CIA DO AR

A primeira coisa de que me lembro são uns panos vermelhos ou cor de vinho que me envolviam, numa peça de teatro, creio, da paixão de Cristo, em algum lugar do Colégio Nossa Senhora das Graças, no bairro de Olaria do Cônego, em Friburgo, onde nasci. Tinha menos de dois anos de idade quando fiz essa pequena e rápida figuração; é uma lembrança impressionista, embora bem nítida, marcada apenas pelas luzes intensas e amarelas e a agitação daquele breve momento, eu no colo de alguém, envolto em panos vermelhos...


Outro momento marcante foi quando dona Wanda, minha professora de Português na segunda série da Escola Nove, começou a dizer para minha mãe que minhas redações eram boas. Só me dava 100 e escrevia ótimo em vermelho com a sua linda caligrafia e um ponto final de exclamação!


Na mesma escola, na terceira série, vivi uma situação deliciosa ligada às festas populares do nosso Brasil: fui Lampião ao lado de Beatriz, uma Maria Bonita comprida e magérrima, como eu, mas de uma vivacidade que me cativava por inteiro, inda mais com aquelas pintas de lápis preto enormes nas faces rosadas de rouge. Dançamos xaxado durante a apresentação da quadrilha na festa junina, num palquinho improvisado a um canto do pátio.


Afora dançar com a Beatriz (uhuuuu!!!), o bom de ter sido escolhido para o papel de Lampião (acho que dona Wanda estava por trás disso, penso hoje) é que mamãe me deu um par de revólveres prateados que dificilmente eu ganharia de presente de aniversário ou mesmo de Natal. E o papai, alfaiate de mão cheia, me fez uma roupa toda cáqui, calça e camisa, à qual se acrescentaram, ainda, sandálias franciscanas marrons, um chapéu de cangaceiro e duas cartucheiras cruzando o peito como um sinal de multiplicar. Noooossa! Aquele foi um dia muuuito especial, fala sério...


Aos onze anos, na tentativa (vã) de imitar o Reginaldo, meu irmão mais velho, reconhecidamente bom poeta e já de livros publicados, comecei a escrever... poesias. Claro! A primeira: Mundo de maus/ mundo cruel/ mundo ruim/ mundo infiel... Bem, é difícil colher aplausos em certos jardins, não? (Risos) Mas, foi o começo de tudo.


Ali pelos onze ou doze anos, também, papai se convenceu de que eu desenhava bem, jogado ao chão da sala enquanto mamãe e ele assistiam ao telejornal da noite, com Heron Domingues e Leo Baptista, e resolveu me incentivar: inscreveu-me no curso de desenho artístico e publicitário do Instituto Universal Brasileiro. Era incrível aguardar as lições semana a semana chegar pelos correios, incluindo todo o material, nanquim, lápis e bicos de penas...


No segundo ginasial, já no Colégio Anchieta, dos jesuítas, dona Ledir Porto, nossa querida professora de Português, me escalou, juntamente com Ricardo Juliano Keller, o gênio da turma, para editarmos o jornalzinho mimeografado que oportunamente batizamos de Apolo 70, pois tínhamos acabado de botar o pé na lua no ano anterior e estávamos todos (os russos, não, claro) eufóricos com isso.


Outro momento crucial: aos treze anos de idade fui fazer teatro com Miguel Rotondaro, no Grupo de Promoção Humana do Cônego. Lá conheci um superamigo da vida inteira, Milton Rangel, ator e artista plástico nas horas vagas de sua vida de tecelão, já falecido. Aqueles exercícios teatrais me ajudaram a buscar novos horizontes num momento (difícil) de transição para a adolescência.


Fui parar, em seguida, como todo mundo que queria fazer teatro em Friburgo, no grupo do Jaburu, o GAMA, Grupo de Arte Movimento e Ação. Ali, conheci a relação entre música e poesia, conheci Drummond, Bandeira, Pessoa, Shakespeare, rock progressivo, Brahms, Max Frisch, Brecht, Vianninha, Guarnieri... Uau! O bicho pegou. Viajei para o Festival de Teatro Amador de Ponta Grossa, conheci Vila Velha (PR), foi sensacional! E definitivo.


Bom, a formatura do ginásio, já no Colégio Anchieta de Nova Friburgo, foi um negócio intrigante na vida de um adolescente de 14 anos de idade. Havia ficado gravemente enfermo, com uma amigdalite que evoluiu rápido para uma estomatite generalizada, que me deixou sem mastigar sólidos por algo em torno de dois meses, eu acho, e de cama! E no segundo semestre. Os médicos já estavam suspeitando do pior, meus pais não sabiam mais o que fazer, e os antibióticos só muito lentamente responderam às expectativas.


O fato é que saí da cama direto para o Salão de Atos do colégio, escolhido como orador da minha turma. Foi meu primeiro discurso escrito. Ovacionado. Sob os olhos um tanto incrédulos do padre Rodrigues, nosso diretor, o temível Boitatá dos meus tempos de Anchieta.


Ainda no GAMA, em 1973, o violão entrou na minha vida, por sinal, um violão quebrado que o Jaburu havia dado para o Luiz Claudio, um dos meus melhores amigos daquela fase, e que ele acabou deixando comigo de tanto que lhe pedia emprestado. Veio a primeira canção: Eu sou o momento/ o veneno/ a ferida/ a volta sem a partida... Oquei, mas a melodia é boa...


E aí, finalmente, em 1974, aconteceu a estreia como dramaturgo, diretor e ator do espetáculo “Retalhos”, coletânea dos meus primeiros poemas, costurada com a trilha sonora de Viagem ao centro da Terra, disco do Rick Wakeman que fazia um sucesso absurdo entre nós, no recreio. Robson Louback, colega de turma, trouxera-o na bagagem de volta do seu intercâmbio de inglês.


Montar “Retalhos” implicou em formar o Grupo de Teatro Amador do Colégio Anchieta (TACA), cujo nome imitava o do GAMA, o que pode ser entendido, creio, como uma singela homenagem ao mestre Julio Cesar Seabra Cavalcanti.


Bem, não é difícil imaginar que, novamente, fui o orador da nossa turma de Científico, em 1975. Dessa vez, sem palmas, pois a formatura se deu na capela do colégio. O detalhe é que mandei de cor. Nervoso, mas, de cor... assim, não tinha que segurar as duas folhas trêmulas do discurso.


São esses os movimentos iniciais da minha navegação de cabotagem pelo litoral das artes e seus muitos acidentes geográficos.


O resto, é história...


Leia Mais